02 Agosto 2023
Após a perda da voz extraordinária de Sinéad com sua morte no dia 26 de julho passado, eu espero que possamos ouvir melhor outras mulheres feridas, que clamam por justiça no nosso mundo destruído.
O comentário é da escritora e jornalista estadunidense Kaya Oakes, publicado em National Catholic Reporter, 01-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 2010, quando o Papa Bento XVI publicou uma carta pastoral pedindo desculpas por centenas de anos de abuso sexual clerical na Irlanda, ele também deixou de oferecer alguma indicação de que a política da Igreja em relação ao clero abusivo mudaria. Isso não agradou Sinéad O’Connor, cuja carreira havia sido permanentemente prejudicada 18 anos antes, quando ela rasgou uma foto do Papa João Paulo II no “Saturday Night Live”.
Em um artigo no The Washington Post em resposta à carta de Bento, ela foi franca e direta. Os católicos irlandeses, escreveu ela, “estão em uma relação disfuncional com uma organização abusiva”.
Hoje, quando muitos católicos ao redor do mundo sentem a mesma coisa, podemos entender mais facilmente que, em sua disposição de sacrificar sua carreira em prol da verdade, ela foi profética. Mas, assim como tantas outras mulheres ao longo da história, ela sofreu muito por isso. Para as mulheres da Geração X em particular, no entanto, e para as mulheres da Geração X que foram criadas como católicas ainda mais, ela nos representou de uma forma que nenhuma outra celebridade fez.
Os católicos da Geração X tinham entre 20 e 30 anos de idade quando estourou o escândalo dos abusos em Boston, e nós nos tornamos a primeira geração a se desfiliar da religião na mesma proporção que a os Millennials e a Geração Z mais tarde. Mas também vimos como Sinéad, nossa colega, exibindo uma cabeça raspada como Joana d’Arc, rasgou aquela foto do papa anos antes da investigação Spotlight do The Boston Globe levar à desgraça do cardeal Bernard Law e aos milhares e milhares de revelações de abuso global clerical que se seguiriam. A profecia de Sinéad nos preparou para o terremoto, se estivéssemos dispostos a ouvir.
Eu não tinha televisão em 1992, quando Sinéad ficou diante de algumas velas acesas no Saturday Night Live e rasgou uma foto do papa, porque alguém invadiu meu apartamento e roubou a TV. Eu tinha 21 anos e soube de sua performance alguns dias depois, na minha faculdade católica. Pouco depois da minha formatura, o reitor da faculdade, membro de uma ordem religiosa, seria afastado por manter relações sexuais com um estudante de 18 anos.
Lembro-me de alguns de meus professores resmungando condenações a Sinéad. Aquela foto pertencia à mãe dela, que havia abusado violentamente dela antes de convencer o pai de Sinéad a mandá-la para uma das Magdalene Laundries, as casas para “mulheres rebeldes” da Irlanda.
Durante dois anos, a adolescente Sinéad ouviu outras meninas católicas chorando e gritando enquanto as freiras da equipe diziam que elas eram “pessoas terríveis”.
Muitas gerações de mulheres na Irlanda têm histórias como essa, e notícias chocantes como a descoberta de 800 cadáveres infantis na fossa séptica de uma Magdalene Laundry em Galway são um lembrete horrorizante da escala dos abusos que os católicos irlandeses sofreram. Cientistas e psicólogos estão apenas começando a desvendar os mistérios do trauma epigenético e a entender que a violência e o abuso podem prejudicar não apenas suas vítimas imediatas, mas também muitas gerações de pessoas que vieram depois.
A crise dos abusos quebrou a Igreja Católica na Irlanda. Os católicos irlandeses, cansados de verem seus corpos sendo policiados, mais tarde votariam de forma esmagadora para legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o aborto. Em sua posse em 2022, o novo bispo de Galway, Michael Duignan, disse que a Igreja na Irlanda “está desmoronando diante dos nossos olhos”.
E, enquanto as paróquias fecham e as dioceses declaram falência em números recordes, o catolicismo estadunidense está vendo a podridão do abuso clerical desmoronar seus próprios fundamentos também.
Assim como tantos outros católicos irlandeses de sua geração, no entanto, Sinéad tentou se apegar a coisas sobre o catolicismo que ela considerava dignas de serem salvas. Em uma conversa com os leitores do Washington Post sobre seu artigo sobre Bento, ela escreveu que “nós, irlandeses, sempre adoramos o Espírito Santo” e que o Espírito Santo é o único que pode limpar a Igreja de “maus líderes”.
Ela acrescentou: “Permitam-me deixar bem claro que eu não odeio o catolicismo. E acredito que o nome do catolicismo pode ser restaurado novamente mudando seus líderes atuais e por confissão e transparência”.
Mais tarde, Sinéad seria ordenada em uma Igreja Católica cismática antes de finalmente encontrar a paz como muçulmana. Em suas memórias de 2021, “Rememberings”, ela escreveu que “o Alcorão é como uma canção” e que Deus é “um compositor incrível”.
Esse tipo de inquietação espiritual não é totalmente desconhecido de seus pares da Geração X. Quando apenas metade da Geração X descreve a religião como “muito importante” para as nossas vidas, sentimo-nos mais livres do que as gerações anteriores para mudar de religião, explorar caminhos espirituais alternativos ou deixar a religião para trás.
Nas fotos tiradas para o seu perfil no New York Times em 2021, O’Connor, que mudou seu nome para Shuhada Saquat, mas ainda respondia por Sinéad, usava um hijab junto com um anel da Estrela de Davi e uma grande tatuagem na mão que dizia “Lumen Christi”. No Islã, explicou ela a um leitor que reclamou do conflito de simbolismo, “o Q’ran existe para confirmar todas as escrituras anteriores. Portanto, pode-se manter os anéis da Estrela de Davi e as tatuagens cristãs”.
À medida que a Geração X chega à meia-idade, sabemos que muitos de nossos próprios profetas musicais morreram. Kurt Cobain, Tupac Shakur, Chris Cornell e muitos outros cuja música também misturava rebelião, espiritualidade e crítica social já se foram. Acrescentar Shuhada/Sinéad a essa lista é um luto, e um tipo especial de luto para uma mulher irlandesa-estadunidense católica da Geração X como eu, que precisava tanto de seu exemplo a fim de deixar de ser uma boa menina e começar a falar a verdade ao poder.
No caso dela, quando as pessoas finalmente estavam prontas para ouvir, a crueldade do mundo a havia derrubado, e já era tarde demais. Após a perda de sua voz extraordinária com sua morte no dia 26 de julho passado, eu espero que possamos ouvir melhor outras mulheres feridas, que clamam por justiça no nosso mundo destruído.
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Sinéad O’Connor: uma profeta nunca é bem-vinda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU